Como vim de uma cidade pequena, eu costumava sonhar muito. Eu era um nerd - ainda sou - e um dos meus interesses eram histórias em quadrinhos e super-heróis. Eu costumava me imaginar com os superpoderes que eu via nos gibis, como ser incrivelmente forte ou rápido - talvez os dois. O engraçado é que os supervilões, aqueles que realmente tiram o sono dos super-heróis, geralmente não têm força física para derrotá-los. Não, eles têm outra coisa: uma inteligência extraordinária. No entanto, se você perguntar a alguém qual superpoder eles gostariam de ter, é provável que eles digam algo relacionado à força bruta ou velocidade.
Falo por experiência. Perguntei aos participantes da Conferência Internacional BRAZ-TESOL quais palavras vinham à mente quando pensavam em um super-herói. Eles mencionaram a força sobre-humana acima de tudo. Foi durante um evento promovido pelo nosso grupo de interesse da Mente, do Cérebro e da Educação sobre memória, carga cognitiva e autorregulação. Como meu grupo e eu fomos logo em seguida à super sessão sobre memória do Luiz Chantre, pensei que poderíamos fazer algo para reduzir a carga cognitiva dos nossos participantes. Foi quando a analogia da Capitã Marvel me apareceu, como uma epifania. Deixe-me explicar.
Capitã Marvel e a autorregulação
Atenção, pessoal: spoilers à frente.
O filme retrata a vida de Carol Danvers, piloto da Força Aérea dos EUA que se encontra entre uma raça mais avançada - os Kree - em seu planeta Hala. Ela não consegue se lembrar do seu passado. Tudo o que ela sabe é o que lhe dizem, principalmenter seu instrutor Yon-Rogg. Ele diz que eles estão em guerra contra outra civilização de alienígenas de aparência feia, pele verde e orelhas pontudas, chamada Skrull. Após uma incursão contra os Skrull, Carol Danvers - que se chama Vers no planeta Hala - acaba encontrando seu caminho de volta à Terra nos anos 1990. Ela então conhece Nick Fury, idealizador da Iniciativa Vingadores, e ele a ajuda a descobrir coisas importantes sobre seu passado.
Um dos elementos centrais do filme é como Carol Danvers lida com suas emoções e o papel que Yon-Rogg e Nick Fury desempenham nele. A primeira interação entre Danvers e Yon-Rogg os mostra treinando em um dojo combate corpo a corpo enquanto ela parece se esforçar para controlar seus poderes - disparar fótons de suas mãos. Yon-Rogg diz na cena:
“Controle seus impulsos
Não há nada mais perigoso para um guerreiro do que a emoção.
O humor é uma distração.
E a raiva, a raiva representa o inimigo.”
A mensagem implícita pode parecer: ser muito emocional ou emotivo é ruim e isso precisa ser controlado. No entanto, ao longo do filme descobrimos que os Kree mentiram sobre a guerra contra os Skrull - eles não eram os vilões - e sobre suas intenções com Vers. Ela tinha um dispositivo no pescoço controlando seus poderes o tempo todo. Uma das melhores cenas do filme é o momento em que ela percebe a presença do aparelho, retira-o e decide abraçar sua humanidade, suas emoções. É quando ela se torna verdadeiramente poderosa - inclusive, uma das Vingadoras mais poderosas.
Esta introdução foi minha maneira de explicar a ideia de autorregulação. De acordo com O'Connor e Ammen (2012):
“A autorregulação refere-se aos processos de controle comportamental, incluindo a capacidade de inibir e retardar as respostas, mudar e adaptar com flexibilidade e manter o controle emocional para atingir metas e direcionar o comportamento.
Murray, Christopoulos e Hamoudi (2015) resumem a autorregulação em sete princípios:
A autorregulação serve como base para o funcionamento ao longo da vida
A autorregulação é definida, de uma perspectiva aplicada, como o ato de gerenciar a cognição e a emoção
A aplicação da autorregulação é influenciada por uma combinação de fatores individuais e externos
A autorregulação pode ser fortalecida e ensinada como a alfabetização
O desenvolvimento da autorregulação depende da “corregulação” dada pelos pais ou outros adultos responsáveis
A autorregulação pode ser interrompida por estresse prolongado ou intenso e adversidades, incluindo pobreza e experiências traumáticas
A autorregulação se desenvolve ao longo de um período prolongado, desde o nascimento até a idade adulta.
Autorregulação e o cérebro dos nossos alunos
Todos nós precisamos de autorregulação, mas isso pode ser particularmente desafiador para crianças e adolescentes. Na verdade, Blair & Raver (2015) discutem como a aptidão escolar, ou seja, a capacidade dos alunos de funcionar e ter um bom desempenho em ambientes educacionais, tem muito a ver com o desenvolvimento do córtex pré-frontal (CPF) do cérebro. Por volta dos 6 anos, as crianças começam a demonstrar as habilidades que lhes permitem gerenciar a estimulação, a atenção e as emoções. No entanto, esse conjunto de habilidades ainda é incipiente e o CPF só amadurecerá totalmente por volta dos vinte e tantos anos. Simplificando, quanto mais maduro nosso CPF, melhor podemos nos autorregular.
Uma das principais razões pelas quais nossos alunos lutam para controlar seus comportamentos está relacionada ao subdesenvolvimento do CPF, a sede das nossas Funções Executivas (Hofmann, Schmeichel, Baddeley, 2012).Esses são os processos mentais que nos permitem planejar, focar a atenção, lembrar de instruções e desempenhar tarefas com sucesso (Miyake et al. 2000). O Center on the Developing Child at Harvard (2021) geralmente usa o seguinte modelo de funções executivas:
ATUALIZAÇÃO | ALTERAÇÃO | INIBIÇÃO |
Memória de trabalho | Flexibilidade Cognitiva | Auto-controle |
Governa nossa capacidade de reter e manipular informações distintas em curtos períodos de tempo | Nos ajuda a manter ou desviar a atenção em resposta a diferentes demandas ou a aplicar diferentes regras em diferentes contextos | Nos permite estabelecer prioridades e resistir a ações ou respostas impulsivas |
Ainda de acordo com o Center on the Developing Child em Harvard:
“Assim como um sistema de controle de tráfego aéreo em um aeroporto movimentado gerencia com segurança as chegadas e partidas de muitas aeronaves em várias pistas, o cérebro precisa desse conjunto de habilidades para filtrar distrações, priorizar tarefas, definir e atingir metas e controlar impulsos”
O que estou dizendo aqui é que não ser capaz de regular e controlar as emoções pode levar a mau comportamento, distração, falta de foco e tudo isso afetará os resultados de aprendizagem dos alunos. Mas se os cérebros de nossos alunos ainda estão se desenvolvendo e aprendendo a se autorregular, o que podemos fazer então?
O importante papel dos correguladores
Coincidentemente, Carol Danvers era piloto. Imagine que por algum motivo o sistema de controle de tráfego aéreo não está funcionando bem e nossa amada Capitã Marvel precisa da ajuda de alguém. Ela pode escolher entre seu instrutor Yon-Rogg, que constantemente diz que ela deve suprimir suas emoções e ignorar os sinais, ou Nick Fury, seu novo amigo que faz perguntas, a escuta, dá conselhos e a ajuda a aceitar quem ela é de maneira firme, mas cuidadosa.
Não sei você, mas prefiro que Nick Fury me guie. Talvez Nick Fury saiba algo que Yon-Rogg não sabe: que não podemos realmente separar nossa cognição de nossas emoções e de nossos corpos (Damásio, 2006). Na verdade, tentar evitar sentir nossas emoções pode levar a vários tipos de problemas durante nossa infância e se estender até a vida adulta - veja o princípio 5 acima (Murray, Christopoulos e Hamoudi, 2015).
Podemos e devemos atuar como correguladores e ajudar nossos alunos a praticar a autorregulação. Sempre que você perceber que seus alunos estão lutando para controlar seus comportamentos/emoções, talvez a estrutura de Stuart Shanker (2016) possa ajudar:
Reformule o comportamento
Reconheça o estressor
Reduza o Estresse
Reflita e melhore a autoconsciência
Responda e Desenvolva Estratégias
Conclusão
Bem, não vou mentir para você. Existem fatores genéticos em jogo que podem afetar as funções executivas dos alunos e, portanto, sua capacidade de autorregulação. Além disso, temos que considerar que não passamos tanto tempo com as crianças quanto suas famílias e podemos estar nadando contra a corrente quando se trata de ajudá-los a controlar suas próprias emoções. Sabemos que algumas famílias não são tão presentes ou não sabem lidar tão bem com essas demandas. E tudo fica bem mais complicado no ensino online.
Suponho que a mensagem aqui seja que o aprendizado não é apenas atenção e memória, QI ou inteligência percebida. Vai muito além disso. Precisamos perceber que muitas vezes nosso trabalho é ajudar nossos alunos a passar por momentos difíceis em suas vidas e não simplesmente pedir que suprimam ou ignorem o que estão sentindo. O verdadeiro superpoder da Capitã Marvel não era a capacidade de disparar fótons, superforça ou velocidade. Era sua capacidade de se autorregular.
“Por que caímos, senhor? Para que possamos aprender a nos levantar”
Alfred Pennyworth em Batman Begins
O geek em mim não resistiu usar outra referência de super-herói - de uma franquia diferente. Mas esse é justamente o ponto, não é? O aprendizado - e a vida em geral - não é apenas sobre nossos sucessos. Fracassamos, caímos, nos sentimos cansados, nos machucamos, não temos vontade de fazer as coisas, ficamos com raiva e ficamos tristes. Somos humanos e e tudo isso é completamente natural. Só precisamos nos recompor e seguir em frente.
Terminei minha apresentação em nosso evento mostrando aos participantes um belo trecho do filme da Capitã América. A cena mostrava Carol Danvers caindo, se machucando e se levantando várias vezes desde que era uma garotinha, em diferentes estágios de sua vida. Meu último conselho para os professores é: aprendam sobre autorregulação e, se seus alunos caírem no chão e não conseguirem se levantar, deem uma ajudinha mesmo que isso signifique deixar o conteúdo de lado por um momento. Isso pode ser tudo o que eles precisam para que no futuro eles se levantem por conta própria.
Referências
Blair, C., & Raver, C. C. (2015). School readiness and self-regulation: A developmental psychobiological approach. Annual review of psychology, 66, 711-731.
Damásio, A. R. (2006). Descartes' error. Random House.
Hofmann, W., Schmeichel, B. J., & Baddeley, A. D. (2012). Executive functions and self-regulation. Trends in cognitive sciences, 16(3), 174-180.
Miyake, A. et al. (2000) The unity and diversity of executive functions and their contributions to complex ‘frontal lobe’ tasks: a latent variable analysis. CPsy 41, 49–100
Murray, D. W., Rosanbalm, K., Christopoulos, C., & Hamoudi, A. (2015). Self-regulation and toxic stress: Foundations for understanding self-regulation from an applied developmental perspective. OPRE Report, 21.
O'Connor, K. J., & Ammen, S. (2012). Play therapy treatment planning and interventions: The ecosystemic model and workbook. Academic Press.
Shanker, S. (2016). Self-reg: How to help your child (and you) break the stress cycle and successfully engage with life. Penguin.
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