Uma afirmação que me incomoda bastante é a de que "a escola doutrina" as crianças e adolescentes. Essa máxima vem sendo repetida por alguns segmentos da sociedade, um grupo extremamente conservador, cristão, assumidamente patriótico e a favor da família e do cidadão de bem como algo exclusivo do ambiente escolar. No entanto, para quem gosta de estudar línguas e linguística como eu, não é difícil perceber que a palavra doutrina vem do latim DOCTRINA e está relacionada a DOCTOR e DOCERE. São palavras que remetem à ideia de "ensinar". Quem doutrina, no sentido original da palavra, ensina. Entretanto, como a língua é viva e assume novos contornos e significados, qualquer um com 5 segundos sobrando pode usar o Google para descobrir que DOUTRINA significa:
conjunto das ideias básicas contidas num sistema filosófico, político, religioso, econômico etc
O que isso quer dizer? Doutrinas são bolhas, potes hermeticamente fechados que, no mundo atual, muitas vezes carecem de evidências para substanciá-las. A doutrina é dogmática, inquestionável e inviolável no seu sentido mais puro. O doutrinador faz lavagem cerebral, cega seus espectadores para a realidade objetiva e verificável. A doutrinação cria um universo muitas vezes completamente descolado do mundo real.
Podemos dizer então que a escola doutrina? Pode até ser que sim. Em alguns aspectos, assumindo que o corpo docente e a coordenação sejam compostos de pessoas de histórico semelhante e de pensamento homogêneo. Mas a família doutrina infinitamente mais. A religião doutrina infinitamente mais. O sistema econômico doutrina infinitamente mais. A escola é o lugar de encontros. Da interação social, da troca de ideias com o diferente. Ideias que nós não teríamos acesso se vivêssemos somente dentro da doutrina familiar, religiosa, social, política e econômica na qual estamos inseridos.
É na escola que se aprende sobre outras religiões, sistemas político-econômicos, tipos de organização social ou de família. É nela que aprendemos que não precisamos ser necessariamente cristãos ou conservadores ou adeptos do capitalismo neoliberal. Também aprendemos na escola que é possível ser todas essas coisas. Aprendemos isso contanto que haja liberdade de expressão e valores democráticos, não censura. Uma escola de verdade, pelo menos como eu a vejo, deveria desafiar os conceitos do status quo, abrir os horizontes das crianças e estourar a bolha das doutrinas que as cercam.
Contudo, nos meus anos de mentor pedagógico e consultor educacional, tenho percebido um aumento descomunal da influência das famílias no currículo da escola de suas crianças. As famílias, se achando no direito de consumidores que pagam caro por um serviço, interferem cada vez mais no que os professores podem e devem ensinar e como eles podem e devem ensinar. Essa relação clientelista muitas vezes faz da escola refém de uma mentalidade ultrapassada e perigosíssima.
Eis aqui dois exemplos para ilustrar, um bem recente e outro de alguns anos atrás. Numa escola da Flórida, uma diretora foi mandada embora porque ensinaram arte renascentista e mostraram a estátua nua de Davi, uma das obras mais celebradas do gênio Michelangelo.
No outro caso, uma professora foi afastada por ensinar sobre religião africana. Quando o ensino religioso é cristão, não há problema, certo? Mas qualquer outra religião é automaticamente perseguida. Em um Estado laico, isso não seria doutrinação?
Eu tive o privilégio de ver a estátua de Davi de perto e as diversas outras obras renascentistas em Florença e Roma, incluindo o majestoso teto da Capela Sistina pintado por Michelangelo. É tragicômico pensar que esse movimento artístico fez "renascer" um período de grande criatividade, liberdade e inovações tecnológicas depois de um longo tempo de repressão. Meu ídolo da época foi o genial Leonardo Da Vinci, artista que previu muitos avanços que os seres humanos alcançariam nos próximos séculos - inclusive a capacidade de voar. Esse renascer ocorreu após um período sombrio, a Idade das Trevas, coincidentemente pautada por perseguição, tortura, caça às bruxas, morte pela fogueira e as maiores atrocidades das quais temos registro. Parece que tem gente querendo reviver a Idade Média.
Muita gente está tentando retroceder uns séculos. Um exemplo recente foi de um deputado do estado de Goiás ligado ao bolsonarismo, que promoveu o 1º Seminário de Doutrinação Ideológica no Ensino e lançou um site para que as famílias denunciem professores, coisa que aumentou bastante nos últimos quatro anos. A tal doutrinação comunista de que tanto falam, o desejo por uma escola sem partido e a bandeira da liberdade de expressão levantada por alguns é uma baita hipocrisia. Uma bizarrice sem nexo. Um paradoxo burro e irreconciliável. A lógica é: a doutrina que nós acreditamos que vocês propagam vai contra a nossa doutrina, então vocês precisam parar de doutrinar nossas crianças para que a nossa doutrina prevaleça.
Esquecem-se que o mundo é plural e as crianças e adolescentes a ele pertencem. Esquecem-se do humanismo e do cientificismo produzidos por milênios de construção social, de observação, experimentação e questionamentos. A ironia é que a doutrina que tem prevalecido no mundo é justamente aquela que semeia a exclusão, a violência, a subjugação, o autoritarismo, a ignorância e o negacionismo.
Se a escola está doutrinando, principalmente no campo ideológico do comunismo, nos caminhos progressistas e contra os valores da família tradicional, parece que está fazendo um péssimo trabalho. Basta olhar para o que está acontecendo no mundo com o aumento desenfreado de grupos da extrema direita. Aliás, eu diria que é exatamente o que está faltando: olhar para o mundo e perceber o outro. O problema é que nós só conseguimos enxergar através das lentes das nossas doutrinas. E se nós não sairmos das nossas bolhas, é provável que nunca mudemos o nosso olhar.
A escola é o lugar onde abrimos a mente. A escola deveria ser lugar de resistência (já sei que vão me acusar de doutrinação simplesmente por usar essa palavra). Gasta-se um tempo desproporcionalmente longo tentando apagar o legado do patrono da educação brasileira Paulo Freire, respeitado nos centros acadêmicos mais renomados do planeta, mudando nome de estação de metrô inclusive, enquanto incentivam que as famílias ditem as regras do que os educadores devem fazer na escola sem nenhum estudo sobre o que é educação. Espero que a escola continue sim sendo resistência contra as doutrinas dominantes e que apresente o mundo e seus contrastes para as crianças dessa e das gerações futuras. A educação, para mim, ainda é a nossa maior e melhor esperança para mudar o que está posto.
Sabe o que é irônico? As famílias "tradicionais" tentam a todo o custo proteger suas crianças do mundo "perverso" criado pelos seus inimigos imaginários e não enxergam que elas mesmas estão garantindo a falta de preparo dos seus filhos para um mundo cada vez mais plural e conectado. Imaginem o grau de paranoia de uma família que reconhece em uma das obras mais admiradas do legado cultural humano uma referência à pornografia. Não sei se essa família é cristã, mas espero que eles nunca visitem o Museu do Vaticano.
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